Mas se segundo lição antiga o poder não comporta vácuos, a troca de papéis entre eleitos e togados é até certo ponto compreensível, porque se os nossos representantes não cumprem o seu papel alguém naturalmente assumi-lo-á, porque a realidade é dinâmica.
Esse imperativo da realidade não é, porém, obstáculo a que reconheçamos o estado de exceção vigente, pautado na informalidade, e até por isso mais odioso, porque os militares tiveram ao menos a decência de nos dar a conhecer de suas regras através dos chamados atos institucionais.
Travestir a arbitrariedade com as roupas da justiça não faz do quadrado um redondo, por isso outra coisa não é este arranjo senão uma verdadeira ditadura, claramente violadora de direitos humanos básicos, o que já foi aliás reconhecido e devidamente sancionado com a aplicação da lei Magnitsky.
E se as boas intenções por si só não subtraem as almas ao inferno, porque só as boas obras demonstram a fé verdadeira, necessário saber até que ponto quem diz agir em defesa da democracia trabalhou efetivamente por ela.
Convém então perguntar: a quem compete no Brasil julgar e punir as altas autoridades? Quantas delas efetivamente já foram punidas? Quem deu cabo da Lava-Jato que ameaçava chegar ao próprio Supremo? Se somos conhecidos como o país da impunidade a quem devemos esta má fama?
Na verdade, como dizia Ihering, quando a arbitrariedade, a ilegalidade ousam levantar atrevida e impunemente sua cabeça é sinal evidente que os defensores da lei não cumpriram o seu dever.
Daí que o STF não é solução alguma para a crise de nossa democracia, porque simplesmente ele é parte do problema que temos a resolver.
Então de nada adiantam as bravatas e heroísmos autodeclarados de seus ministros no julgamento dos mais de mil pobres coitados do 08/01, quando não se ostenta a punição efetiva de nenhum ladrão do dinheiro público, porque isto não é coragem senão cinismo explícito e extrema covardia.
Efetivamente não se faz justiça sem equidade, daí que a seletividade com que opera sempre o STF não o recomenda como uma verdadeira corte de justiça, senão como alguma coisa parecida como o Tribunal do Santo Ofício, que de santo só tinha o nome, porque tratava-se da Inquisição.
A juristocracia orgulhosa não é, pois, outra coisa senão verdadeira ditadura travestida, lobos vestidos em pele de cordeiro.
E diga o que disserem, mas contra fatos não há argumentos: o verdadeiro golpe na democracia foi dado pelo próprio Supremo ao se instalar como um tribunal de exceção (aquele que escolhe casuisticamente os réus que deseja julgar, definindo sua competência após os fatos), o que é expressamente vedado pela Constituição que é enfática: “não haverá juízo ou tribunal de exceção"(art. 5º, XXXVII).
Efetivamente o STF faz pouco caso do princípio do juiz natural, uma outra garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso LIII da Constituição, pela qual "ninguém será processado e julgado senão pela autoridade competente", o que estabelece que apenas um juiz ou tribunal pré-constituído pela lei pode julgar um indivíduo, garantindo então imparcialidade ao julgamento e impedindo a criação justamente dos chamados tribunais de exceção, onde a competência é estabelecida após o cometimento do crime.
Então, sobre o iminente julgamento de Bolsonaro, em quem não votaria nunca, mas diante da absoluta clareza da Constituição, lembrando o padre Vieira, digo por dever de justiça e sem medo de errar que isto que se faz a título de defender a democracia e nos poupar de golpistas não está sendo feito por zelo de justiça, senão por inveja, é simples tentativa de eliminação da concorrência. Querem tirar os outros golpistas de circulação para mandarem e roubarem despreocupada, solitária e impunimente.
*Ex-juiz, felizmente aposentado.
